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sexta-feira, 13 de junho de 2014

“A RAINHA DESCALÇA” (Ildefonso Falcones)

Nós, os ciganos, sempre fomos livres. Todos os reis e príncipes de todos os lugares do mundo pretendem dobrar-nos e nunca o conseguiram. Jamais poderão com nossa raça; Estamos melhor do que todos eles, mais inteligentes. Necessitamos de pouco. Tomamos o que nos convém: o que o criador pôs neste mundo não é propriedade de ninguém, os frutos da terra pertencem a todos os homens, e, se não gostarmos de um lugar, vamos para outro. Nada nem ninguém nos amarra. (…). Assim é que sempre vivemos. 
p. 44
~~~*~~~
Em janeiro de 1748, Caridad – uma mulher negra como a noite – desembarca na Espanha. Veio de Cuba e deixou para traz um passado de escravidão e um filho que jamais reencontrará. Agora, era uma mulher livre. Mas o que fazer com a tão sonhada liberdade? A servidão estava enraizada em seu ser, as únicas coisas que ela sabia fazer era receber ordens e trabalhar o tabaco.

Quando chega a Sevilha, mais uma vez se vê à mercê de homens cruéis. Largada a própria sorte, sedenta e febril, resigna-se e aguarda o chamado de seus deuses. Mas ainda não havia chegado sua hora… 
Um homem de pele escura e curtida a encontra, mudando seu destino para sempre. Melchor Vega, um cigano que vive do contrabando de tabaco, leva Caridad para o cortiço onde vive com o intuito de aplacar sua sede. Mas sua neta, Milagros, desenvolve uma terna amizade pela negra.

Milagros é uma jovem cigana por cujas veias corre o sangue dos Vega – rebelde e indomável dos de sua raça. A garota está apaixonada por Pedro Garcia, sentimentos que jamais serão aceitos por sua mãe e avô. Sua família, alimenta um ódio profundo pelos Garcia, uma rixa que Milagros não entende porque deve se estender a ela.  E em nome desse amor proibido, Milagros está disposta a opor-se a sua família…

Sempre juntas, Caridad e Milagros se tornam confidentes e são inseparáveis. A ex-escrava passa a trabalhar com o tabaco contrabandeado por Melchor e tenta entender os novos sentimentos que está desenvolvendo pelo cigano que a acolheu. Mas essa amizade é posta a prova em julho de 1749.

Um decreto real determina que todos os ciganos são pessoas infames e prejudiciais. Devem ser extirpados, como uma praga, de toda Espanha. Tropas reais foram enviadas a todas as cidades para uma ação conjunta, para que todos os ciganos – homens, mulheres e crianças – sejam presos. 
Milagros consegue fugir, mas a prisão de seus pais provoca uma reviravolta em sua vida. Quando a jovem cigana pensa que está diante da felicidade tão sonhada, o destino decide intervir… O ódio e a vingança traz a desgraça para o cortiço. Sua amizade com Caridad é rompida e já não possui o amor de seus familiares.

Os caminhos dessas duas mulheres seguem sentidos opostos. O que as levará de encontro a paixões, traições, dor e perda…
~~~*~~~
A Rainha Descalça – terceiro livro do autor Ildefonso Falcones – é um romance histórico emocionante. Sinto-me privilegiada pela oportunidade que tive em ler todos os romances do autor. Em seu primeiro livro – A Catedral do Mar – Falcones nos apresenta uma história de miséria e servidão, de um homem do povo, transcorrida na Barcelona do século XIV. Em A Mão de Fátima acompanhamos a perseguição dos mouriscos, o conflito entre muçulmanos e cristãos na Espanha do século XVI. Agora, o autor nos brinda com uma história de luta, amizade, amores, perdas e vingança – embaladas ao som de canções e danças ciganas. Um povo perseguido, mas que não se deixa dobrar pelas leis dos payos*, altivos, cujo orgulho de suas tradições, a liberdade e o amor pela família constituem seu bem mais precioso.

Ildefonso Falcones nos leva ao século XVIII, de Sevilha a Madri, numa história de desventuras e injustiças, sobre pessoas que vivem à margem de uma sociedade regida pela intolerância e preconceito. Nas páginas de A Rainha Descalça, não encontramos a vida cigana descrita de uma forma romantizada, mas vemos um povo desprezado… pobre, que sobrevive de pequenos trabalhos, da mendicância, do furto, do contrabando, da leitura das linhas da mão e de sua arte… cantos e danças. O autor detalha os costumes, as tradições e o cotidiano dos ciganos, e demonstra que mesmo perseguidos foram capazes de resistir.

Nesse cenário, ao mesmo tempo sedutor e doloroso, encontramos duas mulheres cujos caminhos se cruzam e vivem uma história de amizade e desesperança. Caridad é uma ex-escrava que não sabe como ser livre, a vida inteira recebeu ordens e castigos. Milagros é uma jovem cigana que sonha com um amor proibido, rebelde e disposta a enfrentar a fúria de sua família para ter o que deseja. De certa forma, elas percorrem um caminho inverso… Enquanto Caridad só conhecia o cativeiro, aos poucos aprende a ser dona de si e encontra seu lugar, já Milagros, que sempre foi livre, se vê subjugada e humilhada. Falcones tem uma habilidade impressionante de tecer personagens femininos fortes… endurecidos e ao mesmo tempo delicados e vulneráveis.

Entretanto, pude perceber uma ligeira diferença nesse romance. Achei A Rainha Descalça mais profundo… melancólico, talvez. É uma história linda e triste, que até mesmo as conquistas são entremeadas de dor, perda e rancor. Fiquei com impressão de que há um preço a pagar por cada escolha… por cada palavra dita. Nos outros livros do autor eu vivenciei momentos tristes, mas também de alegria e contentamento. Não senti isso aqui, do início ao fim fui envolvida por emoções de pesar, aflição e mágoa. E esses sentimentos são traduzidos pelos personagens através de canções repletas de lamentos e amarguras.

Eu sei que estou “rasgando seda”, mas se vocês lerem minhas resenhas dos outros livros do autor, perceberão que eu realmente sou apaixonada por seu trabalho. Ele não escreve épicos que chocam pelas cenas de batalhas e carnificina, mas ele emociona pela crueza da realidade que as pessoas vivenciavam numa época de intolerância. Servos, muçulmanos, negros e ciganos já foram temas em seus livros.

O autor tem o poder de nos transportar para um outro tempo e nos concede o prazer de conhecer um pouco da história da Espanha. Se você é fã de romances históricos, leia Ildefonso Falcones! Qualquer um de seus livros será uma leitura excepcional…

* Payo: para os ciganos, pessoa não cigana. O mesmo que "gadjô".

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